CARPE DIEN

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

3as SÉRIES TEXTO DE APOIO - SIT APRENDIZAGEM 8 - O TERROR E A GUERRA GLOBAL

A longa Guerra Global Contra o Terror e seus efeitos na sociedade internacional: conceitos, contradições e estudos de caso



Javier A. Vadell

Jorge Mascarenhas Lasmar 




I. INTRODUÇÃO



A Guerra Global Contra o Terror realmente transformou o mundo como o conhecemos? Quais foram seus impactos? Como podemos entender suas consequências? Quase 15 anos após os ataques de 11 de Setembro, essas questões ainda são altamente controversas e permanecem não completamente respondidas. Acadêmicos, jornalistas, políticos e mesmo o público leigo debatem calorosamente as múltiplas dimensões e perspectivas sobre essa matéria sem, contudo, chegarem a um consenso. É exatamente com o objetivo de lançar um pouco de luz sobre esse difícil debate que essa edição especial foi organizada.



Oficialmente, a Guerra Contra o Terror se iniciou em 11 de Setembro de 2001 e terminou em 25 de março de 2009 (Bukerman 2009, p. 1). Contudo, basta acompanharmos os noticiários internacionais para sabermos que a chamada Guerra Global Contra o Terror, e mais importante, seus efeitos e impactos ainda continuam e permanecem relevantes. 


A campanha liderada pelos Estados Unidos contra o terrorismo Salafista Jihadista transnacional trouxe à tona agudas diferenças e contradições em como os Estados entendem e interpretam as normas e valores da sociedade internacional.



 Assim, embora a Guerra Contra o Terror tenha sido diretamente endereçada a grupos terroristas transnacionais, as ações adotadas pelos Estados para combatê-los expôs profundas tensões, limitações e contradições (pré)existentes na sociedade internacional. 



Essa nova realidade social somada à constatação de que algumas de suas instituições são ineficazes no combate ao problema da violência transnacional intriga tanto acadêmicos quanto policy-makers. Mas o mais importante significado da Guerra Global Contra o Terror reside no fato de que essa política foi elaborada tendo em vista tanto os Estados da Sociedade Internacional quanto os terroristas. 



Em retrospecto, percebe-se que algumas das ações adotadas sob o rótulo da Guerra Contra o Terror deliberadamente tentaram redesenhar e reconstruir entendimentos compartilhados sobre a atual ordem internacional.


O problema é que, durante a Guerra Fria, a sociedade internacional foi informada por um entendimento que constituía o mundo como estando dentro de uma bipolaridade material e ideacional. Conforme destaca Wendt (1994199519992006), o significado da polaridade na sociedade internacional pode variar conforme a estrutura social que a informa. Portanto, se aceitamos essa premissa, o significado das normas, valores e instituições internacionais também são informados concomitantemente pela estrutura social e ideacional dentro do qual estão inseridas (Buzan 2004a, pp. 161–204; Hurrell 20022007). 



Portanto, durante a Guerra Fria, os Estados construíram normas e procedimentos que mediavam suas relações ao codificarem, de maneira concreta, padrões de interação compartilhados e mecanismos de controle social que refletiam – ao mesmo tempo em que constituíam – uma estrutura social de rivais ou inimigos.




Contudo, o fim da Guerra Fria trouxe uma nova realidade social. Algumas das antigas normas e instituições da sociedade internacional entraram em uma profunda crise de significado, não apenas devido ao fim incontestável da Guerra Fria, mas também devido ao que parecia ser o fim de uma estrutura social de inimigos que até então norteava as interações entre as grandes e superpotências.


 O fim das referências das estruturas materiais e ideacionais bipolares da Guerra Fria trouxeram uma ilusão liberal-globalista (em sua vertente liberal ou crítica) de que o Estado nacional perderia importância frente ao ímpeto libertador ou opressor dos “mercados globais” da globalização. Da mesma forma, frente à nova realidade social, vários autores acreditavam que o domínio do mercado liberal limitaria tremendamente o uso da força pelos Estados em suas relações internacionais impulsionando-os para uma nova era de pacifismo. 



Essa visão da nova realidade internacional, com uma clara conotação economicista, pode ser representado em sua versão otimista pelo famoso artigo, e posteriormente livro, de Francis Fukuyama, O fim da História (Fukuyama 19891992).
De fato, esses novos padrões liberais de interação entre os Estados, consolidados de maneira quase universal após o fim da Guerra Fria, desafiaram as teorias acadêmicas sobre polaridade e a instituição da “administração das grandes potências” (Buzan 2004b, pp. 34–35). Assim, pode-se dizer que o fim da Guerra Fria se iniciou um período de ressocialização no qual o comportamento das grandes potências em relação umas às outras não confirmou totalmente as previsões prevalentes da tradição neorealista e, dessa forma, desconcertou a comunidade acadêmica. 


De fato, a realidade posterior à Guerra Fria não foi marcada nem pela consolidação de uma única hiperpotência capaz de dominar o sistema internacional (conforme o entendimento realista de unipolaridade) nem as demais grandes potências remanescentes se balancearam contra esse único hegemon(idem, p. 35).



Todavia, Buzan está correto ao afirmar que a interação entre as grandes potências no pós Guerra Fria foi menos problemática do que os desafios criados pelo desalinhamento entre a realidade e as teorias de relações internacionais (ibidem). Isso porque a interação entre as grandes potências desde o fim da Guerra Fria representou uma renegociação de suas identidades e papéis que ainda não atingiu sua forma final ou definitiva. 



Assim, a Guerra Global Contra o Terror se choca contra esse cenário ao funcionar com uma política de (re)organização normativa. Se o comportamento unilateral adotado pela única superpotência durante a Guerra Contra o Terror não é uma novidade histórica, ele de fato resulta na consolidação de novas identidades e na institucionalização de novos papéis dentro da sociedade internacional ao reintroduzir o uso da força como um de seus importantes elementos constitutivos. 



Mais notadamente, percebe-se que a maneira como a Guerra Contra o Terror foi conduzida permitiu a construção de um modelo de uso da força não apenas socialmente aceito pela sociedade internacional mas também moldado para se conformar dentro dos parâmetros ditos liberais. Se por um lado isso foi possível por focar em um inimigo externo à sociedade internacional de Estados, por outro, essa política reforçou o Estado e suas fronteiras, bem como a retomada do uso da força como importantes elementos constitutivos tanto da sociedade internacional quanto da própria noção do que deve ser uma grande potência ou uma superpotência.



Ao amplificar a distância política e militar entre os países através da disparidade de suas capacidades de engajarem em atividades militares (presumidamente) socialmente aceitas no sistema internacional, a Guerra Contra o Terror acabou por agravar a hierarquia existente no sistema internacional. 


Não obstante, o comportamento unilateral da superpotência e as discordâncias geradas por esse comportamento também demonstram que as identidades coletivas que a Guerra Contra o Terror tenta construir, até o presente momento, estão apenas superficialmente internalizadas e portanto instáveis. Tudo isso gera um ambiente de incerteza e instabilidade que parece indicar que mudanças na política internacional apenas vão assumir uma forma permanente se, e quando, a Guerra Contra o Terror se tornar socialmente percebida como simbolizando o novo entendimento de fato da realidade do sistema internacional. Se isso acontecer, a mudança resultante será sustentável e altamente significativa. 



Apesar dos discursos de não aceitação dessas mudanças, os fatos parecem indicar um inegável movimento tácito em direção a um novo entendimento social da unipolaridade em que vivemos.


Assim, a Guerra Contra o Terror pode ser entendida como uma aposta sutil no processo de (re)organizar o atual significado social de polaridade e política internacional entre os Estados. Portanto, a operacionalização da Guerra Contra o Terror acaba por delinear, de uma maneira mais clara, as expectativas subjacentes acerca dos padrões de interações entre os Estados. 



Consequentemente, a Guerra Contra o Terror tem um impacto e significado simbólico, e mesmo psicológico, sobre a sociedade internacional ao institucionalizar não apenas um novo entendimento sobre a realidade internacional mas também ao levantar o limite do que é considerado um comportamento aceitável por parte da superpotência dentro de uma estrutura social liberal que Wendt classificaria como de amigos/rivais.



Portanto, a relevância dos eventos resultantes de 11 de Setembro de 2001 vão muito além de uma questão meramente teórica. Gerou-se uma tensão transformadora para as relações internacionais com implicações tanto teóricas quanto práticas. Logo, os autores desta edição abordam três importantes aspectos da Guerra Global Contra o Terror a fim de contribuírem para o entendimento dessas importantes e inacabadas mudanças: conceitoscontradições e estudos de caso.



II. CONCEITOS




Inicialmente, Héctor Saint-Pierre discute algumas importantes questões conceituais para se entender a atual realidade internacional do terrorismo. Em seu texto, o autor discute o termo “terrorismo” como conceito-chave e intencionalmente mutável. Segundo ele, em realidade, o significado de terrorismo deriva de decisões políticas contextuais que conduzem ao emprego da força. O conceito “extensional” de terrorismo levanta alguns perigos. Simplesmente, lembra Saint-Pierre, abre as portas para a arbitrariedade e sua aplicação depende de razões e motivações meramente políticas.



 A crítica do autor vai além. A definição dessa arbitrariedade gera importantes questões ontológicas e epistemológicas que impedem o desenho estratégico e dificulta o enfrentamento das ameaças. Nesse sentido, o autor propõe limitar o emprego do termo “terrorista” como adjetivo que qualifique certas ações violentas e evitar substantivá-lo em grupos ou estratégias. Como forma de amenizar esse problema, Saint-Pierre propõe uma abordagem “vitimiológica” ao estudo do terrorismo devido a sua “fertilidade heurística e capacidade explanatória” de certas formas de violência.




III. CONTRADIÇÕES



Em seguida, Reginaldo Nasser, Tomaz Paoliello e Rashmi Singh abordam relevantes aspectos das contradições e mudanças originadas pela Guerra Global Contra o Terror para a sociedade internacional. Dessa forma, Reginaldo Nasser e Tomaz Paoliello partem de uma questão crucial na problemática da Guerra ao Terror: após os atentados terroristas de 11 de Setembro e o cenário da invasão ao Iraque, estamos diante de uma nova forma de se fazer guerra? Com o foco na utilização de empresas militares de segurança privada na luta contra o terrorismo no Iraque, bem como um processo de terceirização de serviços de inteligência e de segurança por parte do governo dos Estados Unidos, os autores exploram o papel dos atores privados no cumprimento de fins estratégicos dentro do contexto das chamadas guerras assimétricas.



 Já Rashmi Singh aponta uma interessante contradição entre o discurso e prática da Guerra Global ao Terror. A autora analisa práticas específicas dos Estados Unidos em sua luta e tentativa de securitização da Al Qaeda como a maior ameaça existencial ao “mundo civilizado” após os atentados terroristas de 11 de Setembro de 2001. Segundo a autora, a contradição reside no paradoxo de que foi exatamente a securitização bem-sucedida da Al Qaeda que possibilitou a adoção de políticas profundamente não liberais pelos Estados Unidos, como forma de conter a mencionada “ameaça existencial”.




IV. ESTUDOS DE CASO




Finalmente, partindo de um enfoque mais empírico, dois estudos de caso analisam os impactos da Guerra Global Contra o Terror nos âmbitos regionais e doméstico. Danny Zahreddine e Rodrigo Teixeira focam a ordem regional de Oriente Médio quase 15 anos após os atentados de 11 de Setembro. 



O artigo oferece uma análise partindo da relevância das potências regionais para o equilíbrio de poder naquela região focando em questões centrais: os atentados alteraram de maneira significativa a ordem regional de Oriente Médio? 


Alteraram-se as relações de poder entre as potências regionais nessa região? 


Se sim, de que maneira? 


E, finalmente, como compreender essas transformações? 


A partir da definição dos conceitos de potência média, emergente e regional, os autores aplicam algumas técnicas estatísticas como a Análise de Componentes Principais (ACP), para analisar os períodos de 1980, 1990, 2001 e 2011. 



Os resultados demonstram que as principais forças regionais que historicamente atuaram na região continuam presentes e, portanto, a ordem regional vigente é semelhante à existente no início da década de 1990. Por fim, os autores destacam que as principais transformações na região se deram no campo ideacional, em função do aumento da ação de forças transnacionais.



Já Jorge Lasmar aborda o caso brasileiro no contexto internacional do terrorismo após os atentados de 11 de Setembro. O autor afirma que o Brasil é um objeto de pesquisa muito interessante, mas pouco explorado, para os estudos de terrorismo e violência política. 


A aparência de que o Brasil não é um país ameaçado por grupos terroristas internacionais se deve principalmente a duas causas: a ausência de ataques terroristas em solo pátrio e a postura de negação do governo brasileiro.



 Contudo, o autor chama a atenção de que os ataques terroristas são apenas uma das várias etapas do chamado “ciclo de atividades terroristas”. Assim, esse artigo aprofunda-se na temática abordando seus desdobramentos mais complexos, ligados à série de atividades interconectadas que compõem as “atividades terroristas”. 



Nesse sentido, o artigo se propõe tanto a discutir as limitações que a atual legislação e desenho institucional das forças de inteligência e segurança impõem ao combate do terrorismo internacional pelo Brasil quanto identificar as importantes consequências e impactos que isso pode ter para o nosso país. Dois fatos recentes acontecidos após o envio do artigo para o prelo evidenciam a importância e atualidade desta discussão. 



Por um lado, o envio de ex-prisioneiros de Guantánamo ao Uruguai diante do reconhecimento do governo uruguaio de que não irá monitorar estes indivíduos, somados à livre circulação de pessoas dentro do Mercosul, reforçam a afirmativa de que o Brasil pode não estar imune à penetração de ideologias radicais ligadas ao terrorismo internacional. 



Isso é ainda mais reforçado quando pensamos na recente prisão de um jovem brasileiro de 18 anos na Bulgária sob a acusação de terrorismo. Segundo as autoridades da Bulgária, esse jovem, natural de Formosa (GO) e recém convertido ao Islã, foi preso quando tentava entrar na Turquia de carro, com dois marroquinos, para se juntar ao Estado Islâmico na Síria. Esses três jovens já vinham sendo investigados desde junho de 2014 e tiveram seus e-mails interceptados após terem contatado o Estado Islâmico. 



O brasileiro, de iniciais K.L.R.G., já era objeto de um pedido de prisão feito pela Espanha junto à Interpol por atividade terrorista e, até o momento desta publicação, aguarda o julgamento de um pedido de extradição para a Espanha. Esse caso demonstra, por exemplo, como atuais falhas e omissões da legislação brasileira como a não extradição de nacionais ou a não internalização legislativa de resoluções obrigatórias da ONU (como a Resolução n. 2 178 do Conselho de Segurança que obriga os Estados Membros da ONU a criminalizarem viagens para campos de treinamento ou para se juntar a grupos terroristas) podem trazer importantes limitações na capacidade brasileira de lidar com esse fenômeno.



Para uma discussão detalhada sobre os critérios e definições de potências regionais, grandes e superpotências ver Buzan (2004b, capítulo 5). Aqui usamos o conceito de hiperpotência para designar teoricamente e criticamente a pretensão de um Estado a detentor da capacidade de dominar unilateralmente o sistema como um todo, ver Buzan (idem, p. 69) e Dunne (2003, p. 308).

Veja-se, por exemplo, os discursos presidenciais de países como a França, Rússia e China sobre multipolaridade na sociedade internacional.